Da nova matança nos EUA (e de antigos assassinatos em massa)

A polícia dos Estados Unidos divulgou nesta sexta-feira a identidade do homem que abriu fogo em uma universidade do país na quinta-feira, matou cinco pessoas e feriu cerca de 15 antes de se suicidar.

O atirador foi Stephen Kaszmierczak, de 27 anos, um ex-estudante de sociologia da Universidade Northern Illinois, onde ocorreu o ataque.

"Ele era um estudante excepcional, era um estudante premiado", disse Donald Grady, chefe da polícia da universidade, que fica perto de Chicago. "Ele era admirado pelos professores, por funcionários e estudantes."

"Não tínhamos nenhuma indicação de que esse poderia ser o tipo de pessoa que pudesse realizar ações como essas."

(…) Este é o quarto tiroteio em uma escola americana ocorrido em uma semana.

Na última sexta-feira, uma mulher matou a tiros duas outras estudantes antes de cometer suicídio no Colégio Técnico da Louisiana, na cidade de Baton Rouge.

Em Memphis, Estado do Tennessee, um adolescente de 17 anos foi acusado de atirar e ferir gravemente um estudante na segunda-feira. Na terça-feira, um estudante de 15 anos foi baleado em um colégio da Califórnia.

Há dez meses, um estudante da Universidade Virginia Tech, no Estado da Virgínia, matou 32 estudantes e funcionários da instituição.

O que parece interessante, nisso tudo, é a recorrência desse tipo de crime, nos EUA.

Para explicá-lo, alguns, na linha de um ultra-conservadorismo não esclarecido – mas de voz perigosamente ampliada, nos EUA -, forçam "hipóteses" no mínimo duvidosas

Outros, buscam traçar o perfil psicológico dos matadores. No caso de Kaszmierczak, começam as interrogações sobre a vida pregressa: a separação da namorada, ou a interrupção no uso de anti-depressivos poderiam ser indícios. Mas seriam fatores preponderantes? O PsychCentral conjectura: em 2001 Kaszmierczak saiu do exército, por motivos "sem especificação"; já foi também chamado de "um indivíduo que obviamente tinha problemas".

Traços de assassinos em massa poderiam perpassar a solidão, "mas não necessariamente". Ainda, uma espécie de desejo de onipotência diante do controle da vida alheia, baixa auto-estima, desejo de reconhecimento, obsessão por um grande número de vítimas, e planejamento da matança. Boa parte teve histórico de "depressões" e "desespero" agudo, e dados sobre sensibilidade exagerada a perdas.

Curioso notar como esse tipo de assassínio parece a antiga "loucura moral" ou moral insanity, do século XIX. A moral insanity desembocou nas categorias contemporâneas de transtorno de personalidade anti-social. Mas uma de suas antigas acepções é digna de nota: sem motivo aparente, um indivíduo de repente cometia atos monstruosos; não havia notável história pregressa, e após o crime vários desses indivíduos retornavam à vida normal. Como caracterizar o crime? Seria fruto de uma vontade maligna repentina, livre e responsável, ou resultado de um mecanismo corporal súbito, que suspenderia as funções normais? Entre o ato livre, responsável e culpado, e a determinação imatura e inocente, os psiquiatras oscilavam as perspectivas.

E as recorrentes observações sobre os assassínios de Virginia Tech, Columbine, e outras, deparam-se sempre com o fato de que a história de vida pregressa dos matadores são critérios marcantes, mas não preponderantes, para se caracterizar o ato como "patológico". Marcantes, porque os psiquiatras buscam "traços" da história pregressa, aparentemente agrupáveis; não preponderantes, entretanto, porque uma parcela significativa da população pode desenvolver os mesmos traços, sem entretanto organizar matanças.

Para complicar, percebe-se facilmente que, embora se possa afirmar sobre certa constância estatística de transtornos mentais – o DSM é empregado como parâmetro importante em vários países, inclusive no Brasil -, não encontramos matanças como essas em outros lugares.

Na forma e no conteúdo, algumas coisas não se encaixam. Ora, se não existem dados conclusivos sobre as matanças nos EUA, se a única diferença entre esses matadores e outros indivíduos freak é apenas o ato assassino, e se novas matanças sem dúvida ocorrerão, é porque o fundo delas pode não residir apenas em indivíduos raivosos que escolhem matar.

A "hipótese duvidosa" expressa acima pode dizer mais do que conta: quando um pastor republicano prega que um indivíduo mata 12 pessoas em uma escola por estar "possuído pelo demônio", pretende dizer – depurando suas fantasias – que sob aquele ato permanece uma vontade "maligna", e portanto um indivíduo já marcado por valorizações negativas; em contrapartida, quando um Cho Seung Hui se compara a Cristo e "justifica" a matança como uma reação ao modo de vida de suas vítimas (uma matança generalizada não denota uma imputação de culpa generalizada?), mostra-se um conjunto de relações que é tão recorrente quanto os outros traços das matanças. Um relatório do Departamento de Defesa norte-americano intitulado Implications for the Prevention of School Attacks in the US tem como dado conclusivo – dentre vários outros inconclusivos, vale notar – o bullying:

Finding
Many attackers felt bullied, persecuted or injured by others prior to the attack.
Explanation
Almost three-quarters of the attackers felt persecuted, bullied, threatened, attacked or injured by others prior to the incident (71percent, n=29).21
In several cases, individual attackers had experienced bullying and harassment that was long-standing and severe. In some of these cases the experi
ence of being bullied seemed to have a significant impact on the attacker and appeared to have been a factor in his decision to mount an attack at the school.22 In one case, most of the attacker’s schoolmates described the attacker as "the kid everyone teased." In witness statements from that incident, schoolmates alleged that nearly every child in the school had at some point thrown the attacker against a locker, tripped him in the hall, held his head under water in the pool or thrown things at him. Several schoolmates had noted that the attacker seemed more annoyed by, and less tolerant of, the teasing than usual in the days preceding the attack. (p. 30)

Em outras palavras, existe uma contra-partida no histórico dos assassinos; ao mesmo tempo em que boa parte deles são considerados pessoas problemáticas, outro fator recorrente é um histórico de violência moral recebida. O bullying generalizado, e estendido nos EUA até certos círculos universitários, gera algumas características muito particulares. O que pode dizer muito mais respeito sobre relações sociais, do que apenas desordens psicológicas – estas frequentes, e delimitáveis também em outros países.

E o "algo mais" se completa com aquela informação já conhecida, do cineasta Michael Moore: algo  ambíguo também diz respeito à indústria armamentista ter um papel semelhante ao dos "traços" psicológicos: o acesso às armas é fundamental, mas não essencial para explicar as matanças. Mas como esse cineasta bem lembrou, outras culturas que também legalizam a posse de armas não enfrentam problemas semelhantes.

Conclusão? Os analistas não conseguem – "ainda", dizem alguns – prever matanças; mas o fácil acesso às armas, unido a predisposições individuais e uma cultura carregada de intolerância e violência moral peculiares, pode resultar em uma mistura nefasta. Curioso notar, em todo caso, a correlação entre esses acontecimentos, e as relações interpessoais a que estão ligados.

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E a BBC parece não se decidir sobre quantas vítimas gerou o último atentado 

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