A ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – publicou há pouco um artigo no qual relata, no exterior e no Brasil, um descontentamento generalizado – e até uma fuga de cérebros – da universidade. Aponta-se a crescente burocratização, a falta de verbas ou de subsídios e outros descaminhos que atrapalham a produção científica.
O resultado é que os professores e pesquisadores mais descontentes seriam aqueles em meio de carreira, enquanto os iniciantes e os mais antigos seriam menos descontentes. Os que estão em meio de carreira teriam ainda um impedimento para sair: “hipoteca, carro e filhos”.
O artigo não discute com profundidade o que ocorre no Brasil, e talvez a queixa não seja tão clara, ou uniforme, entre os próprios queixosos. Mas à primeira vista parece evidente porque os professores em meio de carreira estão descontentes: eles estão num cenário que já não é mais o de seus próprios professores – os de “fim de carreira” – e nem é um cenário novo e que ofereceria, mesmo que apenas em promessa, portas abertas para o futuro (como esperam aqueles em início de carreira).
Os professores em fim de carreira tem a seu favor universidades já constituídas – e isso significa estrutura, prédios, cadeiras, recursos – e uma carreira já consolidada (ou ao menos, encaminhada). Via de regra, lecionam em campi mais antigos, e isso significa dizer que, se esses campi são precários ou acumulam alguma precarização, as pequenas ou poucas conquistas adquiridas com o passar das décadas tendem a reduzir o impacto da precarização. Essa situação já não ocorre tanto entre os professores em “meio de carreira”, muitos deles ingressantes na universidade apenas a partir dos anos 2000 e presenciando uma expansão universitária que foi radicalmente interrompida nos últimos anos (expansão que inclusive sofre a ameaça de retração).
Além disso, os professores em “meio de carreira” também presenciaram alteração de direitos trabalhistas ou na estrutura da carreira, o que cria mais obstáculos para projetar algum conforto futuro ou mesmo progressão funcional. Esses mesmos professores são aqueles que foram apresentados a um novo mundo – ausente entre seus professores -, o do produtivismo acadêmico: a produção que não significa mais o controle, por baixo, de qualidade e criação, mas sim índices de citações que não dizem respeito necessariamente a criação e sim a visibilidade e popularidade.
Os professores em “meio de carreira” não tem, portanto, apenas as despesas com hipoteca, carro e filhos. Eles sofrem uma mudança no próprio regime de trabalho, exatamente o que não ocorre com aqueles em “início de carreira”. Estes tem duas coisas, ao menos inicialmente, a seu favor: 1) a perspectiva de conseguirem entrar no jogo acadêmico para além da instabilidade da pós-graduação e 2) um regime de trabalho do qual muitos não presenciaram as mudanças.
É flagrante notar, por exemplo, como muitos entre esses novos ingressantes sequer sabem que há 20 anos um professor de universidade privada recebia de forma compatível à de um professor de universidade pública, ou ainda, que professores não eram pejotizados ou contratados sem maiores direitos, mesmo sob regime horista (isso quando o regime era horista ou quando as horas eram reduzidas, pois tais coisas não eram regra). Esses novos professores não viram que, não faz muito tempo, era impossível que uma universidade demitisse em massa e, quando isso começou a ocorrer, caracterizava escândalo público. Esses professores, finalmente, não viam que é um fenômeno muito recente contratar profissionais com qualquer perfil, apenas sob a preocupação de pagar menos pelo profissional mais básico possível.
Num cenário de escassez como esse, o profissional que entra no mundo da pesquisa acadêmica podendo ser remunerado, e sem ter visto o que sua classe perdeu nos últimos 20 anos, certamente tem “menor descontentamento” do que os colegas em “meio de carreira”.
Disso tudo, outro fenômeno de extrema importância, mas que permanece opaco para o pesquisador brasileiro, é como diferentes universidades e campi passaram a oferecer condições tão diferentes de trabalho. Isso concorre também para a existência de discrepâncias no “contentamento” sobre o trabalho, não mais situadas no ponto da carreira em que alguém está, mas sim no nível de precarização do lugar no qual trabalha. Mas, de todo modo, isso é outro assunto.