O empreendedor brasileiro

O Jornal da USP nos mostra que a produtividade do brasileiro, uma das mais baixas do mundo, diminuiu em 2022. Trabalhamos muito – demais – e produzimos muito pouco.

E há uma série de indicadores negativos: somos 3% da população mundial, mas representamos só 1% das exportações; exportamos produtos sem maior processamento, via de regra agrícolas; dentre as 2000 empresas mais importantes do mundo, apenas 20 são brasileiras; nossas taxas de transporte estão entre as mais caras do mundo porque o lobby do automóvel acabou com o pouco que tínhamos em ferrovias. E nossa mão de obra tem qualidade baixíssima.

Há uma clara e ampla contradição nisso tudo, tendo visto que o brasileiro adora chamar a si próprio de “empreendedor”.

Mas não é preciso pensar muito para entender o que se passa. “Empreendedor” tem sido utilizado para dar nome a qualquer coisa, até ao escambo. Alguém trocou algo? É empreendedor. Vende bala no sinaleiro? Empreendedor. Montou site no onlyfans? Empreendedor!

Em segundo lugar, basta ver a qualidade dos serviços. O brasileiro importou a informática como todo o resto: fez valer o velho jeitinho brasileiro e as relações de cordialidade sob um verniz tecnológico. Aí é fazer o pedido chique no Ifood para que ele chegue frio, atrasado ou mal feito; é ir ao fast-food do Mc Donalds para pegar fila grande e comida minúscula e cara. É solicitar um serviço e passar a depender dele como se estivéssemos tratando com uma milícia.

A lista é imensa. Lei da oferta e da procura? Ali, os preços sequer são declarados, e o atendente, ao ser perguntado, diz um preço a cada dia e variando a cara do cliente. E assim por diante.

Isso, é claro, quando há concorrência (pois brotam monopólios, oligopólios e cartéis), ou ainda a empresa não recebe algum tipo de ajuda governamental direta ou indireta (imagine a mina de ouro que é ser “empreendedor” da educação movido a bolsas do governo).

Disso tudo, seria muito importante um estudo que comparasse esse verniz de “empreendedor” que o brasileiro se dá com as práticas de empreendedorismo que efetivamente aparecem. Pois o jargão de “empreendedor” rende até resultado político e eleitoral.

A inversão do trabalho assalariado

Harry Braverman tem um daqueles livros – Trabalho e Capital Monopolista – que parecem verdadeiros oráculos do avesso. Já não vivemos mais numa era de capital monopolista (embora há controvérsias!) e o livro é antigo, dos anos 1970, ainda tateando o que poderia ser a revolução informática. Mas para além disso, o livro segue vivo, como descrição importante do mundo do trabalho do século XX, bem como de sua formação.

E nesse sentido, Braverman (1981, p. 55) chama atenção a um processo que ocorria em sua época, mas que é o inverso da nossa e permite que nos entendamos por contraste: o do trabalho assalariado.

Dizia Braverman que já houve venda de força de trabalho por salário desde a antiguidade. Aristóteles, por exemplo (na Política, 1258b 9-38), notara que as formas “naturais” de ficar rico envolviam a criação de animais domésticos e agricultura. Já as formas antinaturais envolviam o comércio e os serviços assalariados nas artes mecânicas e no trabalho físico e não qualificado. Mas jamais houve algo como uma classe trabalhadora, ao menos até o século XIV, movimento que se generaliza nos séculos XIX-XX.

Nos EUA – seguimos com Braverman -, no início do século XIX 80% da população trabalhava por conta própria, número que decaiu para 30% em 1870 e, 100 anos depois, reduziu para 10% da população. Isto é: em um século, o trabalho assalariado tornou-se dominante nos EUA.

O dado é importante porque representa algo que sofre hoje uma reversão radical: o esvaziamento do trabalho assalariado, ou uma espécie de hibridização da força de trabalho que confunde o trabalho por si próprio com a venda da força de trabalho.

Na época de Marx e de Braverman, eles testemunhavam um duplo fenômeno, particularmente visível nas fábricas: o fenômeno de 1) alguém que vendia a própria força de trabalho para outra pessoa, 2) esta que detinha uma espécie de unidade de capital, detentora de vários recursos, dentre eles, os recursos humanos que incluíam as pessoas que vendiam sua força de trabalho. De um lado, haveria o homem, sujeito de sua força de trabalho; de outro, uma força de trabalho objetificada, “reificada” (lembremos que res vem do latim, significando objeto em sentido real).

Quando esses dois polos se unem – o trabalhador e o capitalista – o efeito é poderoso: não se tem um homem que vende sua força de trabalho para alguém que explora o homem como força de trabalho; nessa nossa configuração, o próprio homem já reduziu a si próprio, inteiramente, corpo e alma, à força de trabalho.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista. RJ: Zahar, 1981.

Livros sobre a questão palestina

Dois livros sobre a questão palestina que deveriam ser (re)visitados: Israel’s Occupation, de Neve Gordon, e A Limpeza Étnica da Palestina (The Ethnic Cleansing of Palestine), de Ilan Pappé

Além desses dois livros, há algum tempo também publicamos sobre certo uso dos militares israelenses de referências muito curiosas:

Sobre o último link, há um texto traduzido aqui: A arte da guerra.

O início da prisão não-especial

O STF decretou o fim da prisão especial, embora não para todo mundo. Aquelas imagens recentes do juiz batendo na mulher, por exemplo, não renderão a juízes um tratamento “não-especial”.

Mas no fundo, o que salta aos olhos é, ao lado dessa manutenção de certos privilégios, o punitivismo de fundo contra o brasileiro não privilegiado. Pois a luta é a de acabar com a prisão especial de quem teve ensino superior. Não é, portanto, a de melhorar a prisão de quem não o teve.

E ponto final, vamos para casa com a consciência tranquila.

O episódio não deixa de ter coincidências com o jeitinho brasileiro de ver as manifestações na França contra a reforma da previdência. Por lá, à esquerda e à direita os franceses vão às ruas para impedir o aumento do intervalo da aposentadoria em 2 anos. Aqui, não fizemos nada para impedir a nossa, cujas consequências serão terríveis no futuro.

Elegemos outro presidente, mas pelo jeito ainda não conseguimos olhar para a frente em relação a nós mesmos e nossa história.

“Tem que privatizar tudo”

Você precisa de um serviço público e o servidor está ocupado. Mas quando você bem percebe, aquela tarefa na qual ele estava compenetrado para não te atender era… jogar paciência no computador.

Quem nunca? E não à toa, difundiu-se tanto o dito de que “tem que privatizar”.

Mas como o brasileiro é sempre um caso a ser estudado, não seria inútil perguntar o que alguém quer dizer quando diz que quer “privatizar”. Pois nem é preciso ter um olhar aguçado – muito pelo contrário – para notar que o serviço privado é igual, quando não pior, que o público. Pois quem jamais ficou enredado num serviço qualquer por aí? As empresas de telemarketing que o digam.

Ou ainda os entregadores de aplicativo. Ou os motoristas. Ou qualquer outro emprego liberal por aí.

Falamos mal do serviço público como se o serviço privado representasse alguma distinção real.

Os restaurantes, por exemplo. Talher suja, comida suja, pêlo na comida, mal atendimento, produto ou atendimento incompatível com o preço… quem nunca?

Mas há quem diga que o mercado se auto-regula. E de algum modo isso é verdade. Mas se é assim, é preciso explicar então como há estados inteiros – como o Rio de Janeiro – com monopólios de serviços horríveis, como os de ônibus de transporte (quem nunca?). Ou ainda, seria preciso explicar a respeito dos tantos cartéis que presenciamos por aí, por exemplo os dos postos de combustível.

E há tantos empregos nos quais o que importa é ser o filho do dono. Ou ter algum pistolão. Ou ainda, você chega para perguntar o preço – pois o estabelecimento não discrimina preços – e alguém muito preguiçoso responde “para você custa tanto“.

E o que dizer do antigo voto de cabresto? Voltou à mil com o assédio eleitoral: você deve votar em tal cara, senão eu te demito.

Mas há esse outro fenômeno: o brasileiro finge esquecer como é o serviço privado – ou como ele mesmo transforma seu serviço numa grande privada – para dizer que tem que privatizar tudo.

Enzo e Kauê no curso de Humanas

Enzo e Kauê passaram no vestibular para Humanas. Enzo entrou numa faculdade privada e Kauê numa federal.

Logo no início, ambos foram apresentados às matérias de fundamentação de seu curso. Enzo teve aulas online e híbridas para as matérias “mais teóricas” e presenciais para as “mais práticas” e Kauê teve integralmente aulas presenciais. Kauê conheceu ainda o programa de monitoria da universidade, no qual participavam vários veteranos. Kauê soube também que havia pesquisa e extensão na universidade.

As matérias de Enzo foram condensadas em núcleos temáticos, e em algumas turmas as salas ultrapassavam os 50 alunos iniciais (havia turma com até 100 alunos, especialmente as de matérias online). Kauê teve uma turma-base (embora nem todo mundo acompanhava o mesmo período) e fazia matérias específicas: aprendeu Filosofia, Sociologia, Antropologia, as matérias ligadas às perspectivas históricas etc.. Na faculdade de Enzo as matérias de base eram vistas como chatas, na universidade de Kauê eram vistas como básicas.

Enzo não lia textos longos e via de regra os textos eram chamados de “apostilas”. Muitos deles eram apostilas mesmo, senão manuais, frequentemente pré-formatados e vindos de certos grupos educacionais de grandes especuladores da bolsa. Os professores tinham alguma autonomia para escolher os textos, mas reinava o que vinha de cima. No caso de Kauê, em sua universidade não existia “apostila”. Havia muitos textos de xerox (já que os livros são caros) e muitos textos longos. Eles precisavam ser lidos antes de cada aula.

Na faculdade, Enzo ganhou desconto para pagar a mensalidade. Na universidade, Kauê tinha bandeijão e morou um ano na moradia estudantil. Kauê também teve uma bolsa de monitoria (desde o primeiro período gostou de ver a ação dos monitores-veteranos) e, depois, outra de iniciação científica e outra de extensão. Enzo precisou trabalhar por um tempo, mas na maior parte das vezes conseguiu garantir tempo suficiente para a academia e as baladas. Chegou até a fazer um curso de inglês. Kauê conseguiu largar do trabalho para receber uma bolsa que, embora medíocre, lhe deixava estudar.

Enzo ia à balada. Conhecia muita gente não ligada à universidade e conseguia arranjar tempo para não ficar só vendo coisa de estudar. Kauê ia ao bar e às festinhas universitárias. Tudo era universidade, direta ou indiretamente. Ele conheceu muita gente aleatória nas aulas e muitos autores essenciais nos papos de boemia.

Enzo viajou com a família para Orlando, Kauê fez mobilidade internacional para Angola. Enzo só tirava dez, Kauê tinha coeficiente de rendimento 7,2 (mas não dava muita bola porque as atividades excediam, e muito, a aula).

Após alguns anos, ambos fizeram estágios. Enzo vestia um uniforme padronizado e a secretaria do curso o encaminhou para algum dentre os estágios oferecidos. Kauê teve que correr atrás de um lugar, aprender a burocracia do convênio e realizar todas as negociações antes e depois do estágio.

Os dois se formaram quase ao mesmo tempo. E os diplomas diziam que eles eram graduados exatamente na mesma área.

Bolsonaro, Zé Dirceu e o Centrão

Quando estourou o escândalo do Mensalão, houve uma fala de José Dirceu que jamais foi levada a sério. Ela dizia mais ou menos assim: que para que o “nosso governo” (do PT) realizasse suas finalidades de mudança social, o mensalão servia como uma espécie de meio que auxiliaria a justificar os fins. As alardeadas quantias recebidas por deputados serviam para aprovar pautas de interesse do PT.

Mas – e essa é a questão fundamental, aquela sobre a qual parece que ninguém jamais prestou atenção – as pautas de interesse do PT não eram comuns e representavam absoluta novidade no país. Eram aquelas feitas para transferir renda e mudar o Brasil (quase como se o PT usasse os meios à disposição para forçar fins aos quais os mesmos meios estavam pouco dispostos a realizar).

Afinal, o que hoje chamamos de “centrão” – reunindo os antigos “baixo-clero”, o “peemedebismo”, o fisiologismo e tantos outros termos – representava, quase sem mudanças, os mesmos deputados que extorquiam (ou recebiam, você escolhe) o dinheiro do PT.

Além disso, o paradigma então vigente – e vigente até hoje – é o chamado de “presidencialismo de coalizão”: aquele no qual o presidente precisa ter boa base no congresso para não ficar governando com medida provisória ou correr o risco de um impeachment. Dar vantagens aos parlamentares – o velho “toma-lá-dá-cá”, como diz Bolsonaro – era a linguagem de troca ontem, mas também é de hoje.

Isso ajuda a explicar tanto por que Bolsonaro foi eleito com um discurso contra o Centrão (“se gritar pega-ladrão, não sobra um, meu irmão”), mas logo depois encarregou-se de dizer que “sempre foi do Centrão” (esta última expressão, ao menos, é verdadeira, pois Bolsonaro de fato sempre foi do Centrão).

Com isso tudo, temos algo muito interessante. Para ter governabilidade, igualzinho a Temer, Dilma, Lula, FHC, Itamar e Collor, Bolsonaro precisa negociar com o Centrão. Mas se Bolsonaro “retorna” ao centrão, e mais ainda, ao centrão que representa os principais beneficiários do mensalão, seria interessante perguntar o que é que ele faz efetivamente com o centrão. Pois não são exatamente pautas sociais, como as do PT, o que ele tem buscado. E mais ainda: mais de uma vez, Bolsonaro e os filhos disseram que a escolha pelo centrão é escolha contra os partidos de esquerda.

Nesse ingrediente apenas anti-petista é possível ver algo de concreto, representado num macartismo pé-de-chinelo já cultivado antes da vinda de Bolsonaro. Mas isso não explica toda a obra. Pois essa referência antipetista também permite ver, no uso do centrão, o perfeito antípoda do que falava Zé Dirceu. O centrão, que já serviu para aprovar as pautas sociais do PT, continua com suas serventias. Mas elas não são mais – ou não são por agora – as serventias do PT.

Incrível serpente que muda a pele, essa do Centrão! E foi perfeitamente nesse sentido que Bolsonaro conseguiu falar outra verdade – mesmo que enviesada – na entrevista a Bonner e Vasconcelos: a de que, acusando o centrão, Bonner estava incentivando Bolsonaro a “ser ditador”, pois apenas um ditador poderia governar sem o centrão de um lado e a esquerda do outro.

Sabemos que esse seria, no fundo, o maior desejo de Bolsonaro, que nunca escondeu a predileção pela ditadura e seus assassinatos. Mas de algum modo também é o mesmo “Bolsonaro do centrão” quem diz isso: não estava lá ele, o centrão, também na ditadura?

Ecoam aquelas falas de Zé Dirceu na soleira da história, coisa digna de uma História do Esquecimento.

James Webb e o WhatsApp

Hoje o mundo teve a oportunidade de ver as primeiras fotos tratadas do telescópio James Webb, muito mais distante e poderoso que o Hubble. A imagem acima é tão miraculosa que as mídias científicas tiveram dificuldade de contar até mesmo sobre seu significado.

Minha imagem preferida foi: se você segurar um pequenino grão de areia na ponta do dedo e esticar o braço, a imagem acima equivale ao que o pequeno grão de areia cobre no seu campo visual. Atrás do grãozinho, portanto, naquele pequenino ponto do campo visual, figuram milhares de galáxias até há pouco não vistas, ou não vistas com tanta nitidez. Os registros, inclusive, superam os 13 bilhões de anos.

Diante de tamanha notícia, arrisquei dar um passeio nas redes sociais. Os tópicos-tendência incluíam a hérnia do Wesley Safadão, a aprovação da PEC Kamikaze em primeiro turno e muita gente defendendo político mentiroso e fascista.

O “desgosto” nas universidades

A ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – publicou há pouco um artigo no qual relata, no exterior e no Brasil, um descontentamento generalizado – e até uma fuga de cérebros – da universidade. Aponta-se a crescente burocratização, a falta de verbas ou de subsídios e outros descaminhos que atrapalham a produção científica.

O resultado é que os professores e pesquisadores mais descontentes seriam aqueles em meio de carreira, enquanto os iniciantes e os mais antigos seriam menos descontentes. Os que estão em meio de carreira teriam ainda um impedimento para sair: “hipoteca, carro e filhos”.

O artigo não discute com profundidade o que ocorre no Brasil, e talvez a queixa não seja tão clara, ou uniforme, entre os próprios queixosos. Mas à primeira vista parece evidente porque os professores em meio de carreira estão descontentes: eles estão num cenário que já não é mais o de seus próprios professores – os de “fim de carreira” – e nem é um cenário novo e que ofereceria, mesmo que apenas em promessa, portas abertas para o futuro (como esperam aqueles em início de carreira).

Os professores em fim de carreira tem a seu favor universidades já constituídas – e isso significa estrutura, prédios, cadeiras, recursos – e uma carreira já consolidada (ou ao menos, encaminhada). Via de regra, lecionam em campi mais antigos, e isso significa dizer que, se esses campi são precários ou acumulam alguma precarização, as pequenas ou poucas conquistas adquiridas com o passar das décadas tendem a reduzir o impacto da precarização. Essa situação já não ocorre tanto entre os professores em “meio de carreira”, muitos deles ingressantes na universidade apenas a partir dos anos 2000 e presenciando uma expansão universitária que foi radicalmente interrompida nos últimos anos (expansão que inclusive sofre a ameaça de retração).

Além disso, os professores em “meio de carreira” também presenciaram alteração de direitos trabalhistas ou na estrutura da carreira, o que cria mais obstáculos para projetar algum conforto futuro ou mesmo progressão funcional. Esses mesmos professores são aqueles que foram apresentados a um novo mundo – ausente entre seus professores -, o do produtivismo acadêmico: a produção que não significa mais o controle, por baixo, de qualidade e criação, mas sim índices de citações que não dizem respeito necessariamente a criação e sim a visibilidade e popularidade.

Os professores em “meio de carreira” não tem, portanto, apenas as despesas com hipoteca, carro e filhos. Eles sofrem uma mudança no próprio regime de trabalho, exatamente o que não ocorre com aqueles em “início de carreira”. Estes tem duas coisas, ao menos inicialmente, a seu favor: 1) a perspectiva de conseguirem entrar no jogo acadêmico para além da instabilidade da pós-graduação e 2) um regime de trabalho do qual muitos não presenciaram as mudanças.

É flagrante notar, por exemplo, como muitos entre esses novos ingressantes sequer sabem que há 20 anos um professor de universidade privada recebia de forma compatível à de um professor de universidade pública, ou ainda, que professores não eram pejotizados ou contratados sem maiores direitos, mesmo sob regime horista (isso quando o regime era horista ou quando as horas eram reduzidas, pois tais coisas não eram regra). Esses novos professores não viram que, não faz muito tempo, era impossível que uma universidade demitisse em massa e, quando isso começou a ocorrer, caracterizava escândalo público. Esses professores, finalmente, não viam que é um fenômeno muito recente contratar profissionais com qualquer perfil, apenas sob a preocupação de pagar menos pelo profissional mais básico possível.

Num cenário de escassez como esse, o profissional que entra no mundo da pesquisa acadêmica podendo ser remunerado, e sem ter visto o que sua classe perdeu nos últimos 20 anos, certamente tem “menor descontentamento” do que os colegas em “meio de carreira”.

Disso tudo, outro fenômeno de extrema importância, mas que permanece opaco para o pesquisador brasileiro, é como diferentes universidades e campi passaram a oferecer condições tão diferentes de trabalho. Isso concorre também para a existência de discrepâncias no “contentamento” sobre o trabalho, não mais situadas no ponto da carreira em que alguém está, mas sim no nível de precarização do lugar no qual trabalha. Mas, de todo modo, isso é outro assunto.

O liberal brasileiro

Quando fui morar no RJ encontrei, certa vez, um restaurante convidativo. Era bastante simples e não cobrava extremamente caro como os maiores dos arredores. Dei uma olhada no cardápio e não havia prato executivo, mas o dono diz que eles também faziam. Pedi então um executivo e veio bem servido, a 15 reais (preço do início dos anos 2010).

Gostei do serviço e parecia que o dono queria me deixar à vontade, até ser meu amigo. Fui uma segunda vez e ele cobrou 13 reais.

Comecei a ir ali com alguma frequência. Mas os preços nunca eram os mesmos. E o executivo jamais aparecia no cardápio. Aí eu pagava 15, 14, 11, 17, 13…

Aquilo me incomodava cada vez mais, especialmente quando o preço aumentava. Quase parecia que o preço dependia do papo que eu precisaria ter com o dono, aquele mesmo que parecia querer ser meu “amigo”.

Parei de ir ao restaurante e nem passei mais por lá. Muito tempo depois, encontrei a esposa do dono e ela disse que ele havia ficado muito triste de não me ver mais ali. Percebi, de toda forma, que era impossível que eu comentasse sobre o mal estar que sentia, ao ver que eu era só uma espécie de coadjuvante do dito “serviço”.

Mas a minha surpresa – ao menos inicial – é que esse tipo de prática não era exclusivo dali. Quanto aos restaurantes caros, logo percebi que o serviço também era péssimo, penhorado em quem você era, embora ao menos havia um preço anunciado. Eu ia à padaria e, novamente, não havia preço anunciado, e isso quando o produto já não era ruim de saída (inúmeras vezes vi o dono pegando o mesmo pão do qual recém abanou as moscas).

Mudei de cidade e só encontrei a mesma coisa: quando o preço era anunciado, já era caro. Ou ainda, quase sempre deveria haver um tipo de mediação com o dono ou quem quer que fosse para não ter aquelas coisas com má qualidade ou moscas (ou outras sujeiras, às vezes humanas mesmo).

Num desses lugares, certa vez o preço foi anunciado como “prato à vontade” e o preço era de 12 reais. Pensei: finalmente um prato digno e barato. Mas aí foi possível ver também o outro lado: por vezes os clientes se reuniam em 2 ou 3 para revezar o prato, pois afinal, era um prato por 12 reais e à vontade… Ninguém disse quantas pessoas precisariam comer por prato!

Na última vez, entrei no restaurante, me servi e fui pagar. A dona então disse: “Você não é daqui, né?”. Estranhei e ela continuou “tá na cara que você não é daqui porque você é educado. Como é o seu nome?”

Respondi (e com uma sensação braba de déjà vu sobre como a coisa terminaria). Ela disse então que adora saber o nome dos clientes, conversar com eles e ter uma relação mais pessoal. Era muita gentileza! Durou 4 idas ao restaurante, pois em cada uma delas o preço também era diferente. A quebra no tratamento ocorreu precisamente quando eu chamei a atenção ao fato de que ela aumentou o preço.

Preço caro ou não anunciado, produto ruim, necessidade de ser “amigo” do dono para ter acesso ao razoável: eis uma prática que às vezes flerta com as leis mais universais. E o curioso é que tais coisas, em minha vivência no Rio, se imiscuíram com a história do Brasil dos últimos anos, ao menos desde 2013. Todas aquelas pessoas protestando, primeiro pedindo um Brasil melhor e sem corrupção, depois condenando as manifestações partidárias, pregando o “liberalismo” e então perseguindo o “comunismo” entrevisto até no médico que recusava a dar o “kit COVID” no posto de saúde…

É uma noção de liberalismo e de indivíduo muito curiosa (caso essa noção tenha de fato aterrado por aqui).