“Desenvolvimento” e “progresso” explicarão os desmandos e arbitrariedades do Brasil atual?

Belo Monte, Cracolândia, Pinheirinho, desocupações compulsórias não divulgadas no Rio de Janeiro, muros de acrílico dividindo vias expressas e favelas… O Brasil está se “desenvolvendo” e saltam aos olhos inúmeras ações de divisão ou simples truculência de governos e polícias.

O que explicaria essas ações? O Sakamoto disse o seguinte:

O Brasil se tornou um imenso canteiro de obras.

O problema é que há gente morando nos locais onde se quer construir.

Então, para garantir que ninguém interrompa este país (que caminha impávido para cumprir seu destino glorioso), remove-se, expulsa-se, retira-se. Degreda-se. Para onde? Pouco importa, contanto que não atrapalhe o progresso.

Será o progresso o culpado? Não coloco a questão em termos de civilização x barbárie ou no sentido – muito correto – de que em âmbito geral o “progresso” sempre envolveu partilhas inconfessas. O problema está em colocar o próprio “desenvolvimentismo” ou o “progresso” como os culpados essenciais (condição interna, necessária e suficiente) do que ocorre no Brasil. Seria isso?

No caso do Pinheirinho basta ver, para dar um exemplo, a idéia (não restrita ao caso do Pinheirinho) contida em diversos comentários por aí, por exemplo o de nosso comentador Guilherme Levy:

primeiro eles tiram todo mundo a força de suas casas para só depois cadastrar as famílias e bens de cada uma, jogando tudo e todos no buraco que der.
Quer dizer, ligam o “foda-se” e ainda recolhem aplausos dos imbecis de sempre.

É curioso pressupor um país preocupado com o “progresso” e o “desenvolvimento” não ter, pelo menos em tese, controles, programas, efeitos ou constrangimentos institucionais subsequentes, ordenanças enfim – no melhor e pior sentido, a História mostra – visando objetivos sobre as populações-alvo atingidas. Afinal, o país interessado no próprio progresso pode definir o mesmo “progresso” do jeito que convém a seus burocratas e custe o que custar às suas diversas populações.

Não faltam na História exemplos, inclusive nefastos, de modelos de gestão focando determinadas populações-alvo para determinados fins auto-proclamados de “progresso”. A máquina nazista de gerar morte prescrevia a si mesma “progresso” visando certas populações-alvo em termos de quantidade de balas de fuzil ou gás necessário para matar o maior número de indivíduos. Ou mesmo, em via contrária e sob outros fins não faltam exemplos de países que investiram em seu “progresso” por via de complexos sistemas de educação, como a Coréia do Sul. Moral da história: todo “progresso” auto-alardeado, desde o positivo do país avançado atual ao abominável do projeto nazista, pressupõe grosso modo uma série de fatores como a posição do gestor, a ação das ordenanças e o cálculo dos efeitos dessas mesmas gestão e ordenanças sobre uma população-alvo. O nazista pressupunha a morte do polonês e do judeu, o sul-coreano visa o bem-estar e a melhoria material de sua população: mal ou bem, grosso modo as diversas racionalidades governamentais atingem uma população e se interessam nos efeitos dessa ação mesma.

Agora voltamos ao comentário acima:

primeiro eles tiram todo mundo a força de suas casas para só depois cadastrar as famílias e bens de cada uma, jogando tudo e todos no buraco que der”.

O conteúdo é muito semelhante ao da frase do Sakamoto:

“Degreda-se. Para onde? Pouco importa, contanto que não atrapalhe o progresso”.

Não é difícil encontrar, nas conversas cotidianas ou nos entremeios das noticias de jornal, exatamente o conteúdo desses enunciados: a polícia agiu para cumprir a ordem judicial e ponto final, as aparências de poder público mascaradas em colchões precários de escola, atendimento médico escasso e abrigos improvisados no chão de duas igrejas significam aquilo mesmo que mostram: no Brasil as consequências da ação do governo são problema da população, não do governo.

Coloca-se alguns médicos aqui e um abrigo ali, mas o fundamental é que não há planos de ação visando a todos, apenas medidas situadas e caricaturais. A situação se regula por decorrência, as coisas quando muito “vão se organizando”. Se há algum modelo de racionalidade na ação do governo, ele não visa propriamente os efeitos de sua própria ação sobre a população, pois a população não é absolutamente alvo. O objetivo auto-alardeado era cumprir a ordem judicial sob o discurso da “redução de danos” e ponto. Novamente, o fundamental é que, aos olhos da ordem governamental, a população do Pinheirinho não tem consistência ou direitos próprios que se legitimariam por ações desse mesmo governo dirigidas ao destino de todos os habitantes.

Mas o que então explica esse curioso modo de ação, que nem ao menos calcula os efeitos de seus próprios meios ou o destino de todas aquelas almas expulsas, rebaixadas do estatuto de “população” (enfim ali parecia se formar um bairro e negociações nesse sentido se desenvolviam) para o de simples coisas jogadas no mundo? O que faz o brasileiro perder sua consistência de cidadão, autorizando-nos a pensar que ele – nós – apenas a recebe sob um jogo preciso de circunstâncias que não é universal ou necessário, contrariando a própria idéia de República e de cidadania?

Não deixa de ser curiosa a repetição desses casos (Pinheirinho, Cracolândia, Belo Monte…), se comparada com os ecos – muito sugestivos – de algumas descrições bem mais antigas, por exemplo esta, de Sérgio Buarque de Holanda, sobre a Demarcação Diamantina, ação inédita dos portugueses para regular o trânsito e estadia de gente nas Minas descobertas:

A partir de 1771, os moradores do distrito ficaram sujeitos à mais estrita fiscalização. Quem não pudesse exibir provas de identidade e idoneidade julgadas satisfatórias devia abandonar imediatamente a região. Se regressasse, ficava sujeito à multa de cinquenta oitavas de ouro e a seis meses de cadeia; em caso de reincidência, a seis anos de degredo em Angola. E ninguém poderia, por sua vez, pretender residir no distrito, sem antes justificar minuciosamente tal pretensão.

Tem-se portanto, no Brasil, exemplo de interesse para regular o trânsito de quem está ou não em determinado território e sobre o que faz ali. Mas a que se deve esse interesse?

“Única na história”, observa Martius, “essa idéia de se isolar um território, onde todas as condições civis ficavam subordinadas à exploração de um bem exclusivo da Coroa”.

(…) A circunstância do descobrimento das minas, sobretudo das minas de diamantes, foi, pois, o que determinou finalmente Portugal a pôr um pouco mais de ordem em sua colônia, ordem mantida com artifício pela tirania dos que se interessavam em ter mobilizadas todas as forças econômicas do país para lhe desfrutarem, sem maior trabalho, os benefícios. [Raízes do Brasil, p. 103]

Não vivemos mais sob o jugo de Portugal. O Brasil já conquistou consistência própria. E o brasileiro? É curioso a regulação acima se reger por motivos bastante interesseiros, não importando propriamente as pessoas. Estas figurariam como uma espécie de excedente a interferir no verdadeiro interesse. A regulação atinge essas pessoas, mas não as visa. A importância do indivíduo é apenas negativa. Ela apenas varia frente à “exploração de um bem” ou a mobilização de “todas as forças econômicas” para fins exteriores aos habitantes. Ou como diz Buarque logo adiante, pouco importa

que seja frouxa e insegura a disciplina fora daquilo em que os freios podem melhor aproveitar, e imediatamente, aos seus interesses terrenos. [p. 108]

4 comentários em ““Desenvolvimento” e “progresso” explicarão os desmandos e arbitrariedades do Brasil atual?

  1. Parafraseando seu título, acho que é Ordem e Progresso.
    Semanticamente, ordem poderia ser entendida como ordenar, colocar em ordem, definir prioridades, e o progresso deveria ser da nação brasileira. A base é o respeito.
    Só que o que o fascismo entende por Ordem é obediência irrestrita e punição, e Progresso como apropriação privada do Estado. A base é o medo.
    Os europeus colonizadores não nos vemos como brasileiros, e continuamos a usar e descartar “Quem não pudesse exibir provas de identidade e idoneidade julgadas satisfatórias”.
    “Julgadas por quem, cara-pálida?”

    1. Oi Guilherme!

      Escrevi isso porque há bastante gente por aí culpando a nova onda de “desenvolvimento” do Brasil por certo ranço “desenvolvimentista” contido em várias linhas de governo, por ex. o PAC do PT e outras medidas.

      Daí a questão é mais ou menos a seguinte: será que esse empréstimo de motes como “desenvolvimento” ou “progresso”, ou enfim de qualquer outro modelo, explicam de todo o que anda ocorrendo por aí? Parece que não, visto que diversos intérpretes do Brasil, como Buarque, colocam outros fatores que seriam mais fundamentais, não importando muito qual o “empréstimo” da vez.

  2. Realmente, “desenvolvimento” e o “progresso” de quem? Para quem?

    Alguns acreditam que vivemos em um regime democrático, com maiores possibilidades de expressão, porém, cada vez mais se dá justamente o contrário. A criminalização dos movimentos sociais e da pobreza vai se instituindo desta forma, “à margem da lei” (mas com ela), no cotidiano.

    É impressionante o número de declarações favoráveis à ação policial nestes casos que você citou. Ousar se colocar contra o Estado, ousar defender uma outra posição, ousar manifestá-la… tudo isto tem sido cada vez mais perigoso, pois a repressão não vem apenas do aparelho do Estado, mas se faz presente no “bom senso” do nosso cotidiano.

    Eu ainda acredito que existem responsáveis para este Estado de coisas. A “conciliação de classes” que vemos em nosso país se dá apenas em função do sistemático esmagamento da classe explorada! Ela não pode ser a única solução (saída) possível!

    Abraços, Alisson

    1. Olá Alisson!

      Pois então, pensei bastante sobre teu comentário e, de repente, para fazer juz às questões que se colocariam a partir do Buarque, seria interessante perguntar sobre em que sentido a sociedade burguesa e depois a “democracia” se instauraram por aqui e diferentemente de outros países.

      Buarque tenta mostrar que o Brasil tem características peculiares e elas permanecem em muitos sentidos quando o Brasil se “mistura” com outros aparatos (materiais, sociais, tecnológicos, estruturais etc.). Seria de se autorizar a dizer que a própria luta entre “direita” e “esquerda” se institui por aqui com certas características próprias. Parece que essas características próprias é que não se tem colocado muito na balança, por exemplo com a moda atual do “desenvolvimento”. Culpam o desenvolvimento, mas será ele agente necessário e suficiente desses desmandos e descasos que presenciamos?

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