A inversão do trabalho assalariado

Harry Braverman tem um daqueles livros – Trabalho e Capital Monopolista – que parecem verdadeiros oráculos do avesso. Já não vivemos mais numa era de capital monopolista (embora há controvérsias!) e o livro é antigo, dos anos 1970, ainda tateando o que poderia ser a revolução informática. Mas para além disso, o livro segue vivo, como descrição importante do mundo do trabalho do século XX, bem como de sua formação.

E nesse sentido, Braverman (1981, p. 55) chama atenção a um processo que ocorria em sua época, mas que é o inverso da nossa e permite que nos entendamos por contraste: o do trabalho assalariado.

Dizia Braverman que já houve venda de força de trabalho por salário desde a antiguidade. Aristóteles, por exemplo (na Política, 1258b 9-38), notara que as formas “naturais” de ficar rico envolviam a criação de animais domésticos e agricultura. Já as formas antinaturais envolviam o comércio e os serviços assalariados nas artes mecânicas e no trabalho físico e não qualificado. Mas jamais houve algo como uma classe trabalhadora, ao menos até o século XIV, movimento que se generaliza nos séculos XIX-XX.

Nos EUA – seguimos com Braverman -, no início do século XIX 80% da população trabalhava por conta própria, número que decaiu para 30% em 1870 e, 100 anos depois, reduziu para 10% da população. Isto é: em um século, o trabalho assalariado tornou-se dominante nos EUA.

O dado é importante porque representa algo que sofre hoje uma reversão radical: o esvaziamento do trabalho assalariado, ou uma espécie de hibridização da força de trabalho que confunde o trabalho por si próprio com a venda da força de trabalho.

Na época de Marx e de Braverman, eles testemunhavam um duplo fenômeno, particularmente visível nas fábricas: o fenômeno de 1) alguém que vendia a própria força de trabalho para outra pessoa, 2) esta que detinha uma espécie de unidade de capital, detentora de vários recursos, dentre eles, os recursos humanos que incluíam as pessoas que vendiam sua força de trabalho. De um lado, haveria o homem, sujeito de sua força de trabalho; de outro, uma força de trabalho objetificada, “reificada” (lembremos que res vem do latim, significando objeto em sentido real).

Quando esses dois polos se unem – o trabalhador e o capitalista – o efeito é poderoso: não se tem um homem que vende sua força de trabalho para alguém que explora o homem como força de trabalho; nessa nossa configuração, o próprio homem já reduziu a si próprio, inteiramente, corpo e alma, à força de trabalho.

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e Capital Monopolista. RJ: Zahar, 1981.