Eles tem Columbine. Nós temos 174.

Morto após jogar a jaqueta

Dizem as vítimas do sequestro da viação Galo Branco (Alcântara-Estácio) que o sequestrador William Augusto da Silva, de 24 anos, começou o sequestro dizendo que iria repetir o episódio do ônibus 174. Aos familiares, William havia dado indiretas sobre acabar com a própria vida.

Só fiquei sabendo do episódio após ver as reações de uma comunidade virtual de engenharia e uma foto do governador Witzel, comemorando como se fizesse um gol do Pelé. Na comunidade virtual, diziam: “mais um CPF neutralizado!”

A Globo cobriu o fato em tom de parabéns. Mostrou, ainda, a “evolução” (sic!) da polícia, que finalmente estaria libertada de um uso “político” das operações policiais. O suposto uso “político” (quase disseram “esquerdista”) seria o responsável pelo que ocorreu no ônibus 174 – a ação desastrada que levou à morte de uma refém, e a ação de execução policial do sequestrador, por enforcamento, gerando inclusive documentário).

Ainda marcado pelos comentários da engenharia, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi a pergunta sobre o que tem acontecido nos cursos de ciências exatas. Quando fiz o meu, há muitos anos, estudei Voltaire e tinha aulas de Sociologia e Filosofia. Não que tenha me tornado doutor na área, mas uma das coisas que comecei a perceber com o tempo foi o contraste entre a reflexão sobre as contas e a reflexão sobre o mundo.

Ou melhor: começou a me parecer que a inteira baixa de nível no profissionalismo brasileiro disponível é diretamente proporcional à negligência da formação em humanidades. É como se precisássemos retornar a figuras como Jean Piaget e Alexandre Koyré para dizer: as pessoas não atingiram desenvolvimento moral capaz de autonomia, apesar de supostamente saberem fazer contas (pois viadutos e prédios tem caído por aí). E em termos sociais, elas não abandonaram o pensamento pré-científico, são incapazes de análises, de abstrações, de inverter a perspectiva. Em suma: as pessoas se recusam a julgar, não se colocam mais no lugar do outro.

Nos tempos passados deste blog, chamamos a atenção à imensa coincidência dos casos estilo Columbine, nos EUA. De Columbine a Virginia Tech, chegando nos mais atuais dos incels, notamos como os assassinatos americanos em massa estão ligados ao armamento indiscriminado, mas também a frivolidades como o bullying. Mas no caso do Brasil é diferente. Nossos casos são passionais, envolvem boa dose de ódio popular e aquele nosso elitimo inconfesso, uma grande comoção que tem sempre os mesmos hábitos: linchamos os bandidos, aplaudimos os erros policiais, enterramos todo e qualquer contexto. E então estamos prontos para um novo episódio 174.

No caso de William, toca a mãe chorando com o pai de uma das vítimas., os relatos sobre depressão, o desfecho trágico e o saber de que William e suas vítimas, no fundo, participam de uma mesma tragédia diária: nossa recusa de ser um país.

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De todo modo, penso que algo diferente tem acontecido. Não apenas repetimos tais coisas, mas as repetimos em termos ainda mais dramáticos. Eu não via engenheiros, ou futuros engenheiros, dizendo tais coisas sobre “bandidos com o CPF cancelado com sucesso”. Não via também governadores dando socos no ar pela morte de um bandido. Não via as pessoas sem reação, totalmente anestesiadas, vendo o céu ficar escuro e fazendo brotar água negra, enquanto um presidente nega o desmatamento e afasta cientistas respeitados.

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