A fé e a psicologia

A Psicologia – diga-se, os psicólogos – sofre de algumas questões que são dose. Certas sutilezas evocam todo o estilo de uma formação, e independente do “campo” que se escolha.

É sempre importante lembrar: se você, psi, vê um pesquisador lendo com alguma seriedade um texto sobre teoria da personalidade, não quer dizer necessariamente que ele está “acreditando” na psicologia da personalidade. Se lê Pavlov, não quer dizer que está “acreditando” em Pavlov. Se lê Watson, Skinner, quem quer que seja, isso não é um ato de fé. E também não é um ato de ecletismo.

Um exemplo clássico é o de Pavlov. Hoje eu lia um texto, de livro de referência, de um pesquisador analisando como Skinner enxerga Pavlov. Lá pelas tantas, o pesquisador solta um “ao menos, nisso, Pavlov ESTAVA CERTO”. O texto, que deveria ser sobre Skinner e Pavlov, de repente transforma-se num texto sobre o próprio comentador, o DITOCUJO. É uma retórica digna de memes estilo “Instituto Tireidoku” ou “vozes da minha cabeça”.

Dia desses me surpreendi com um caba que riu porque comentei sobre um pesquisador que pesquisava o “Wittgenstein intermediário”. O tom era de deboche mesmo, pois afinal, “que bizarrice é essa? Quem estudaria um “Wittgenstein intermediário”?” Esse riso é a perfeita redução da teoria ao estudante dela – ou, em outras palavras, uma redonda psicologização de qualquer pensamento.

Quem sustenta uma posição dessas deixa sempre passar, sorrateiramente, um critério: o seu próprio. Ele cobre a perfeita distância entre o fogo e a frigideira, pois se acusa uma certa tentativa de leitura séria como um simples ato de fé, é porque tem alguma fezinha escondida.

O patriotismo brasileiro

Foto: Ricardo Stuckert

Disse Bolsonaro em relação à Amazônia, contra a Alemanha:

“A imagem do Brasil? Você acha que grandes países estão interessados na imagem do Brasil ou em se apoderar do Brasil?”

Nacionalismo, certo? Eis o que Ricardo Salles disse após Ricardo Galvão sustentar a credibilidade internacional do INPE e da ciência brasileira:

“Com todo respeito ao sr, o nacionalismo do sr é uma coisa indisfarçável, e isso é uma das razões de não termos um sistema up to date, porque é tanto ufanismo com coisa nacionalista, que ao inves de ter o melhor temos o que tem porque é brasileiro”.

O governo Bolsonaro é “nacionalista” quando nega investimento de outros países para preservação ambiental. Mas não é nacionalista quando se trata de investir na ciência brasileira.

O que dizer em relação a nosso Urânio, produto estratégico para a soberania nacional?

Temos que resolver internamente a questão (…) que hoje é monopólio da União e está nas mãos da Indústrias Nucelares do Brasil. O que temos que fazer é flexibilizar nossa legislação para que possa haver a participação da iniciativa privada na exploração do urânio

, disse o ministro das minas e energia, Almirante Bento Albuquerque. E o próprio presidente já disse, sobre a mineração em geral:

Terra riquíssima (em referência à reserva Yanomami ). Se junta com a Raposa Serra do Sol, é um absurdo o que temos de minerais ali. Estou procurando o Primeiro Mundo para explorar essas áreas em parceria e agregando valor. Por isso, a minha aproximação com os Estados Unidos. Por isso, eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA.

Mas há versões segundo as quais o presidente pregaria que a mineração favorecerá o desenvolvimento local. Que os índios, principais habitantes de tantos lugares candidatos à mineração, merecem ser “reintegrados” à sociedade. Será mesmo?

Ciência e “ideologia”

Jesse Owens
Jesse Owens

O governo Bolsonaro tenta se sustentar a partir de um erro histórico, já praticado e comprovadamente fatal: na falta, erro ou insuficiência de medidas de governo, promove a existência de um suposto inimigo para garantir sua própria existência.

Assim é que, enquanto estiver no governo, Bolsonaro valorizará torturadores e acusará conspirações petistas, esquerdistas, venezuelanas e cubanas. Afinal, não há nada além disso. Retire-se as palavras e dedos em riste? Não há nada além de uma agenda de destruição da constituição de 1988 e favorável à velha política.

Dois exemplos recentes desse vazio governamental são a omissão de se reunir com o ministro francês Le Drian, e o comentário de que, para preservar o ambiente, basta fazer cocô uma vez a cada dois dias. Ironia? Não, apenas nada a dizer em troca.

Por isso é preciso que o “inimigo”, visto no discordante, se materialize. Já dissemos que o mecanismo usado pelo governo para isso é manjado: é preciso acusar um dissidente sempre onde houver um discordante.

Acusar sempre, mais e mais. Pois não é propriamente o debate racional que garante a transformação do discordante em dissidente. É a repetição indefinida, diária, até que atinja os pontos de ônibus e as mesas de bar.

É por isso que a ciência e as universidades são alvos privilegiados. Tanto um quanto o outro se sustentam em dados factuais e discussões racionais. Se conseguirmos acusar de fato um aparelhamento ideológico na ciência e na universidade, encontrar um bando só de professores com camisa vermelha e boina do Che Guevara, isso será muito mais convincente do que as paranóias do WhatsApp. Novamente, a receita é simples: pavimentar a existência de um inimigo e dissidente sempre que aparecer um discordante e então generalizar. Repetir o tema até colar na cabeça do povo.

Assim é que Ernesto Araujo achou possível negar o aquecimento global porque quando visitou Roma estava mais frio ou porque há asfalto que esquenta próximo aos termômetros de medição. Assim Bolsonaro denunciou que, por trás do INPE e em figuras como Ricardo Galvão, há “ONGs internacionais”, e a mentira, aí, gerou mais estardalhaço do que a verdade (mentira inclusive sustentada pelo ministro do meio ambiente). Assim Weintraub, que flagrantemente não entende de universidade, utiliza argumentos ineficazes para ver se colam em torno de seu “Future-se”.

Não está em jogo a verdade ou a mentira, mas aquilo que, repetido, cola melhor.

A lista de diatribes do governo é muito maior. Vem desde o plano de governo (80 slides mal formatados com erros de português) e uma paranóica – porém constante – acusação a Paulo Freire, às universidades e à “doutrinação” nas escolas. Passa pela incrível lista de membros do governo que possuem tudo, menos mérito (com vasta lista de plágios ou informações falsas!). Chega na receita olaviana de achincalhar todo debatedor que aparecer pela frente. Discordou? É esquerdista!

Eventos acadêmicos já começam a ser proibidos pela acusação de “político-partidários”.

Já dissemos aqui: a simples acusação de que o conhecimento está errado ou é esquerdista tem um erro fatal: os fatos. Disse Ricardo Galvão muito acertadamente: contra o conhecimento não há autoridade, senão a Razão. Não é interferindo de fora, politicamente, que algo mudará.

Pior ainda: interferindo nas universidades de fora, e não no âmbito acadêmico, na razão, nos fatos, o governo apenas repete velhas receitas, do governo Stalin por exemplo.

A receita é simples: o governo quer praticar controle ideológico acusando os outros de praticá-lo. Pois só assim consegue transformar o discordante em dissidente. Cria assim um inimigo e justifica a própria existência. Quanto mais os outros reclamarem, aí estará a voz do dissidente, do inimigo, do mal a combater.