“Tem que privatizar tudo”

Você precisa de um serviço público e o servidor está ocupado. Mas quando você bem percebe, aquela tarefa na qual ele estava compenetrado para não te atender era… jogar paciência no computador.

Quem nunca? E não à toa, difundiu-se tanto o dito de que “tem que privatizar”.

Mas como o brasileiro é sempre um caso a ser estudado, não seria inútil perguntar o que alguém quer dizer quando diz que quer “privatizar”. Pois nem é preciso ter um olhar aguçado – muito pelo contrário – para notar que o serviço privado é igual, quando não pior, que o público. Pois quem jamais ficou enredado num serviço qualquer por aí? As empresas de telemarketing que o digam.

Ou ainda os entregadores de aplicativo. Ou os motoristas. Ou qualquer outro emprego liberal por aí.

Falamos mal do serviço público como se o serviço privado representasse alguma distinção real.

Os restaurantes, por exemplo. Talher suja, comida suja, pêlo na comida, mal atendimento, produto ou atendimento incompatível com o preço… quem nunca?

Mas há quem diga que o mercado se auto-regula. E de algum modo isso é verdade. Mas se é assim, é preciso explicar então como há estados inteiros – como o Rio de Janeiro – com monopólios de serviços horríveis, como os de ônibus de transporte (quem nunca?). Ou ainda, seria preciso explicar a respeito dos tantos cartéis que presenciamos por aí, por exemplo os dos postos de combustível.

E há tantos empregos nos quais o que importa é ser o filho do dono. Ou ter algum pistolão. Ou ainda, você chega para perguntar o preço – pois o estabelecimento não discrimina preços – e alguém muito preguiçoso responde “para você custa tanto“.

E o que dizer do antigo voto de cabresto? Voltou à mil com o assédio eleitoral: você deve votar em tal cara, senão eu te demito.

Mas há esse outro fenômeno: o brasileiro finge esquecer como é o serviço privado – ou como ele mesmo transforma seu serviço numa grande privada – para dizer que tem que privatizar tudo.

Privatização dos Correios

Eis como, em 2008, anunciavam os Correios como empresa e gestão:

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) alcançou um feito inédito: pela primeira vez apareceu em uma lista “Top 50” criada pelo Reputation Institute, uma organização sediada em Nova York, e publicada pela revista norte-americana Forbes (leia texto em inglês). A empresa brasileira superou inclusive a americana FedEx, que ocupa a 52ª posição. Além disso, os Correios conseguiram a primeira colocação no quesito respeitabilidade entre as empresas de correio do mundo, o segundo lugar no ramo de logística e, de todas as empresas brasileiras citadas na pesquisa, foi considerada a quinta mais confiável. As quatro brasileiras que aparecem antes dos Correios são: Petrobras (20ª posição), Gerdau (24ª), Usiminas (40ª) e Vale (43ª).

Temos uma capacidade imensa de esquecer as coisas no Brasil. Não faz muito tempo, os Correios chegaram a ser a empresa eficiente que vinha na cabeça dos brasileiros quando perguntados, e políticos como Cristovam Buarque chegaram a dizer que as escolas deveriam imitar os modelos do Banco do Brasil e dos Correios, que apresentavam condições de base para o serviço prestado.

Claro, eu também ouvia sobre como os Correios estavam inflando desnecessariamente o quadro administrativo e começaram a fazer parte de esquemas de corrupção. Ouvia histórias de como o setor de planejamento multiplicava cargos inúteis ou, principalmente, cabides políticos, enquanto o setor operacional continuava dando modelo. Também vi que escândalos como o do Mensalão começaram pela corrupção nos Correios, capitaneada por figuras como Roberto Jefferson.

As razões alardeadas da privatização são:

Nas justificativas que constam de estudo para privatizar os Correios, o Ministério da Economia aponta corrupção, interferências políticas na gestão da empresa, ineficiência, greves constantes e perda de mercado para empresas privadas na entrega de mercadorias vendidas pela internet, o e-commerce

Mas a pergunta que nunca se faz, aquilo que o brasileiro nunca põe em questão, é: como pode ser possível que numa década, da noite para o dia, uma empresa lembrada como exemplar possa se transformar na imagem da ineficiência e da corrupção?

Pois privatizam os Correios agora dizendo que é ineficiente, pesado, gera custos. Não muito tempo atrás era o contrário, inclusive como empresa estratégica.

Igualmente, privatizam os Correios sob a acusação de ter sido penduricalho de cargos de confiança políticos. Então com a privatização a prática foi extinta? Será um estado de coisas inerente aos Correios? O Brasil ficou, com a privatização, menos passível de escolher correligionários e parentes? E a privatização não terá vícios e negociatas obscuras, como tantos outros exemplos o mostram?

Em terceiro lugar, privatizam os Correios acusando-os de monopólio. Dizem: o monopólio deve ser quebrado para gerar competição, bons serviços e preço baixo. Mas quando as pessoas dizem isso, esquecem dos serviços monopolizados prestados por aqui, começando por quando andam de ônibus (há estados inteiros monopolizados). Competição? Lembremos dos cartéis dos postos de gasolina…

Há ainda uma outra questão: qual será o modelo empregado, e se ele será efetivo. Dizer que os Correios são estratégicos significa dizer que o serviço é universal e igualitário. O ribeirinho do igarapé amazônico e o playboy da zona sul do Rio tem os mesmos direitos e acesso ao mesmo leque de preços.

Pode-se dizer que os Correios serão privatizados por uma série de coisas. Só não dá para falar que privatização é necessária por gigantismo estatal,  ausência de lucro, carência de gestão ou ausência de caráter estratégico, especialmente em empresas que já tiveram seu momento de boa gestão.

Não há qualquer sentido, senão a má gestão ou a má vontade política, que faça com que uma empresa pública perca seu caráter público e se transforme em cabide de interesses privados (continuando ela pública ou não). Mas vejo que vai demorar para o brasileiro aprender a lição.